O Dabke (também escrito “dabka” e دبكة em árabe) é um estilo de dança típico da região do Levante (parte do Oriente Médio mais ligada ao Mar Mediterrâneo), dançado em grupo, com pessoas em linha de mãos dadas ou, hoje em dia, em formações de palco. Sua principal característica são as batidas de pé no chão, marcando o ritmo forte da música.
Segundo a tradição oral, esta dança teria surgido a partir do costume de construir casas de adobe, material composto de barro e palha que precisava ser compactado junto às estruturas de madeira para erguer casas com telhados estáveis. Conta-se que as famílias e os vizinhos se juntavam para pisar e pular sobre essa estrutura ao som de música, e essa tradição acabou se tornando uma dança de celebração realizada em linhas e círculos em eventos como casamentos, o que teria dado origem ao dabke. Há de se lembrar, porém, que a “origem” de qualquer manifestação cultural é sempre algo complexo de se determinar, tanto pela dificuldade de estudar estruturas de movimento (que em geral são praticadas por grupos sociais que não deixam vestígios escritos, visuais ou materiais de suas práticas), tanto por conta de disputas narrativas que entram em cena quando uma manifestação cultural é institucionalizada e “folclorizada”.
O caso do dabke é muito significativo nesse sentido. De acordo com o pesquisador Nicholas Rowe (2011), o dabke foi parte da construção de comunidades políticas e identidades culturais diversas ao longo do século XX. Isso é compreensível ao analisarmos o contexto histórico e político da região do Levante neste período.
No século XIX a região era controlada pelo Império Otomano, porém, aos poucos foi caindo na esfera de interesses do colonialismo Europeu, a partir do qual potências como França e Grã-Bretanha buscaram exercer poder político, econômico e cultural em regiões de fora da Europa. Um dos grandes legados da presença europeia na região foi a definição dos atuais estados nacionais a partir do Acordo Sykes-Picot.
Este acordo foi um tratado secreto firmado em 1916 entre entre o Reino Unido e a França, com a anuência do Império Russo e do Reino da Itália. O objetivo era definir as esferas de influência e controle de cada nação no caso da eventual partição do Império Otomano, o que de fato ocorreu após o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918. O acordo deu ao Reino Unido o controle do que hoje é o sul da Palestina e Israel, a Jordânia e o sul do Iraque. A França ficaria com o controle do sudeste da Turquia, do norte do Iraque, da Síria e do Líbano.
A partir daí, definiu-se as fronteiras do que hoje são a Síria, a Jordânia, a Palestina (mais tarde ocupada por Israel), o Líbano e o Iraque. Depois dessa divisão, que pouco levou em conta vínculos étnicos, sociais e culturais da região, estilos musicais, danças, e outros aspectos culturais pré-existentes tornaram-se específicos de cada país, sendo essenciais na constituição das identidades nacionais dos estados-nação emergentes. Tal fenômeno, porém, não é exclusivo ao Oriente Médio. Como observado pelo antropólogo Gilmar Rocha:
A “cultura popular” tem merecido a atenção dos intelectuais ocidentais desde fins do século XVIII, momento em que a Europa viveu inúmeras e profundas transformações em todos os níveis da vida social. (...) Frente ao processo civilizatório, imaginado como inelutável pelos defensores do Iluminismo e, por conseguinte, do Evolucionismo aplicado à sociedade, os valores e os costumes correspondentes ao mundo da cultura popular considerados ameaçados de desaparecimento passaram a merecer a defesa de inúmeros intelectuais que, em concorrência àqueles movimentos intelectuais, viram nas festas, na poesia, nos jogos, nas músicas e nas danças das classes subalternas, não só uma forma de resistência cultural, senão um sistema cultural de preservação do “espírito do povo” - base de muitos nacionalismos emergentes. (Rocha, 2008, p. 2018)
Levando-se em consideração esse processo de redefinição de identidades e culturas nacionais no Oriente Médio, o dabke, que era uma dança característica dos meios rurais de toda a região foi reapropriado por movimentos intelectuais urbanos e grupos folclóricos específicos de cada país e passou a ter conotações políticas diversas através da manifestação de ideologias nacionais. Ao ser adaptada para o palco, cada país buscou desenvolver essa dança como uma tradição folclórica local que os representasse culturalmente e politicamente a nível nacional e internacional. Passou, assim, a ser considerada uma dança “típica”, do Líbano, da Síria, da Jordânia e da Palestina, ganhando passos e características estéticas e musicais “específicas” de cada nação.
Esta história, porém, ganha novos contornos ao se ter em conta a questão da ocupação israelense de territórios palestinos que tem início com a criação do Estado de Israel em 1948. O estabelecimento do estado nacional judeu em território árabe-palestino resultou, inicialmente, em um conflito millitar que durou de 1947 a 1948 e no deslocamento e exílio da maioria da população autóctone, evento referido em árabe como al-Nakba (النكبة, a catástrofe). Neste contexto, o pesquisador Nicholas Rowe analisa como o dabke acaba sendo apropriado por diferentes movimentos políticos em meio ao “trauma coletivo” ocasionado pela Nakba, que fragmentou laços econômicos, sociais, geográficos e políticos existentes, despedaçando a sociedade local e sua cultura material e imaterial (Rowe, p. 370). Neste contexto de redefinições de laços e identidades, o sionismo, o pan-arabismo e nacionalismo palestino utilizaram o dabke como forma de ganhar credibilidade política por meio da apresentação pública de uma dança que, no século anterior, não tinha nenhuma associação com nenhum desses ideais.
Por um lado, o sionismo (movimento político nacionalista que defende o retorno dos judeus para a “Terra de Israel”, localizada na Palestina) se apropriou do dabke a fim de estabelecer conexões culturais entre os colonos israelenses (em sua maioria, judeus que vieram da Europa e Estados Unidos), tomando-o como uma tradição “antiga” que também teria pertencido a seus antepassados em épocas bíblicas. Por outro lado, o movimento nacionalista palestino também se utilizou do dabke como um símbolo nacional da luta contra a ocupação israelense.
Segundo o pesquisador David A. McDonald, a transposição do dabke, uma dança tradicional das classes populares rurais palestinas, para uma dança com significado político, dançada pela juventude e pelas classes médias urbanas serviu como uma ponte, esses dois mundos, facilitada por uma rede complexa de instituições, organizações trabalhistas, universidades e outros grupos sociais. Desta maneira, “a divisão cultural e política entre a base cosmopolita e amplamente urbana do movimento nacional e as massas autóctones rurais foi superada a partir do folclore e na articulação de novas identidades nacionais”, integrando mulheres, jovens, pobres rurais e refugiados urbanos no discurso nacionalista palestino (McDonald, 2013, p. 136).
Desta maneira, o dabke tornou-se uma dança de resistência entre palestinos, representando o orgulho nacional frente à ocupação de Israel em seu território. Tal uso político do dabke pode ser percebido em manifestações muito atuais, como nos protestos chamados “Grande Marcha do Retorno” que aconteceram após o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, decidir reconhecer Jerusalém como a capital de Israel. Os protestos foram lançados ao longo da fronteira Gaza-Israel em 30 de março de 2020 para exigir o direito das pessoas de voltarem para suas casas anteriores à ocupação israelense de 1948.
Entre os refugiados palestinos e as comunidades diaspóricas, o dabke também tem grande importância. Essa dança é ensinada e performada em campos de refugiados, em grupos de descendentes de palestinos ao redor do mundo como uma maneira de manter as relações com o território, como demonstrado pela pesquisadora palestina Shyrine Ziadeh:
Os dançarinos de dabke na diáspora entendem essa dança como meio de apresentar seu patrimônio cultural por meio de movimentos. (...) Falam sobre como isso os fortalece, através do sentimento de pertencimento a uma comunidade, reestabelecendo a ideia de casa, de identidade, de expressão e de liberdade. (Ziadeh, 2020)
Segundo Sarah Amawi, pesquisadora jordaniana de origens palestinas e dançarina de dabke, a popularização dos grupos de dabke ao redor do mundo leva a tentativas de “despolitização” desta dança. Muitos destes grupos buscam “transcender” os conflitos entre nacionalidades e utilizar a dança como meio agregador, formando comunidades em torno dessa prática corporal, independente de nacionalidades. Segundo ela, porém:
Você não pode remover uma dança de seu contexto político e dabka, é uma dança muito politizada. (...) Este é o nosso patrimônio. Quando você diz "dabka", única e a primeira coisa que vem à minha mente é a Palestina, e a resistência, e a alegria, e a tristeza, e a raiva que vêm com as pessoas quando elas estão dançando para indicar muitas coisas, antes de mais nada, para as pessoas que estão lá naquele país. É para mostrar que eles têm o direito de permanecer. Eles estão pisando no chão: olha, nós estamos resistindo, esta é a nossa terra, é isso que estamos fazendo. E para as pessoas na diáspora, é isso que as conecta com o seu patrimônio. (Amawi, 2020, em entrevista para Assunção).
O dabke é uma dança que vem crescendo no Brasil, tanto entre comunidades de imigrantes sírio-libaneses e palestinos quanto fora do contexto diaspórico, principalmente entre praticantes de dança do ventre. Neste último caso, muitas vezes o contexto histórico e político é apagado e o dabke tratado apenas como uma dança social e celebratória ou como uma dança de palco. Defendemos aqui que todos esses aspectos devem ser tidos em conta quando abordamos o dabke nas salas de aula de dança no Brasil, tendo em vista que passos e músicas podem ter significados nacionais ou políticos específicos.
Bibliografia:
AMAWI, Sarah. Dabke: from Social Dance to Political Stance. 09 jun 2020. Website Patrimoine d'Orient. Disponível em: https://patrimoinedorient.org/index.php/en/2020/06/09/dabke-from-social-dance-to-political-stance/ . Acesso em: 10 jun. 2021.
MCDONALD, David A.. Performative Politics: Folklore and Popular Resistance during the First Palestinian Intifada. In: KANAANEH, Moslih; THORSÉN, Stig-Magnus; BURSHEH, Heather; MCDONALD, David A. (ed.). Palestinian Music and Song: expression and resistance since 1900. Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 2013. p. 123-140. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt16gzf3q. Acesso em: 07 jul. 2021.
ROCHA, Gilmar. Cultura popular: do folclore ao patrimônio. Mediações - Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 14, n. 1, p. 218-236, fev. 2008. Disponível em: https://www.academia.edu/31551098/Cultura_popular_do_folclore_ao_patrim%C3%B4nio. Acesso em: 08 jul. 2021.
ROWE, Nicholas. Dance and Political Credibility: the appropriation of dabkeh by zionism, pan-arabism, and palestinian nationalism nicholas rowe. The Middle East Journal, [S.L.], v. 65, n. 3, p. 363-380, 20 jul. 2011. The Middle East Journal. http://dx.doi.org/10.3751/65.3.11.
ZIADEH, Shyrine. The role of Dabkeh for Refugees in Diaspora as a promoter of Palestinian-Syrian intangible heritage. 2020. Website Patrimoine d'Orient. Disponível em: https://patrimoinedorient.org/index.php/en/2020/06/26/the-role-of-dabkeh-for-refugees-in-diaspora-as-a-promoter-of-palestinian-syrian-intangible-heritage/. Acesso em: 10 jun. 2021.
Entrevista:
Amawi, Sarah (2020). Entrevistada por Assunção, Naiara M. R. G. de. Londres, Reino Unido. 28 de agosto de 2020.
* Todas as citações feitas de materiais em inglês foram traduzidas livremente pela autora.