Eça de Queirós, antes de se tornar o renomado escritor português era apenas um jovem jornalista com aspirações literárias. Este jovem teve a oportunidade de viajar ao Egito em 1869 para cobrir as festividades da inauguração do Canal de Suez. Essa viagem ao Egito (e também à Síria e Palestina) provocou grandes impactos no jovem escritor, sendo possível perceber situações e lugares em diversos dos seus livros inspirados pelas experiências dessa viagem.
Além das festividades da inauguração do canal de Suez, Eça participou de outros festejos, com direito à música e dança. Suas impressões sobre essas festas, seus dançarinos e dançarinas, além de outras de suas descrições e interpretações, podem ser lidas nos relatos publicados postumamente pelo seu filho com o título “O Egito – notas de viagem”. Entre maravilhado e chocado, Eça descreve as más condições de conservação de ruínas históricas, a beleza dos barcos deslizando pelo Nilo, a dura vida da população camponesa, a grandiosidade do deserto. Em um capítulo em especial podemos ver o fascínio que a dança provocou: Noites Feéricas, onde Eça descreve com muita beleza uma festa no Cairo com apresentações de Ghawazee. Suas descrições são muito ricas, com muitas figuras de linguagem, como analogias e metáforas narradas de forma muito vívida.
Um relato de viagem como uma fonte histórica fala muito do local da viagem, mas também sobre o seu autor, aquilo que é relevante para ele, seu encantamento, suas frustrações, as escolhas do que contar (e o que não contar), a forma de descrever, a poética e a fantasia se misturando com a experiência vivenciada.
Ao ler o texto de Eça como uma fonte histórica é importante lembrarmos que ele não tinha nenhuma obrigação de relatar o que ele viu e viveu nos mínimos detalhes, com ordem cronológica, registrando todos os fatos (o que também seria impossível). Pelo contrário, Eça, tocado pela experiência da viagem, utiliza de sua imaginação para criar algo que possa provocar no leitor as sensações que ele sentiu, ou as sensações que ele queria que o leitor experimentasse, não importando o desenrolar dos fatos vivenciados por Eça, mas sim aquilo que ele escolheu contar e como ele escolheu contar
"O círculo dos fachos cintilava em cima; as durbakas gemiam, as castanholas, com um som agudo, irritava os nervos. E aquela figura movia-se ao centro, gravemente, com a indolência d'um ídolo, com uma sensualidade misteriosa e quase lúgubre, como que celebrando um rito secreto e lascivo - o velho culto de Afrodite - e seus braços tinham movimentos tão fortemente lânguidos, tão carregados de magnetismo, que os olhos dos árabes luziam, e instintivamente o espírito, perturbado e tenebroso, lamentava os velhos cultos perdidos da Deusa." (pág. 343-344)
Por exemplo, caracterizar as danças egípcias através de referências a cultos antigos, deusas lascivas e espíritos perturbados, são recursos literários encontrados em obras orientalistas, que pintam o oriente como exótico, estranho, perigoso. Como é possível perceber na citação acima, o discurso orientalista faz parte do relato de Eça de Queirós. Mas ele também traz informações interessantes, como a descrição dos instrumentos utilizados na apresentação e que aos seus ouvidos o som dos snujs (que ele chama de castanholas) “irritava os nervos”.
Nenhuma obra é produzida no vácuo. Nenhum autor escreve no vazio, sem referências e acúmulos. É possível ler os relatos de Eça e se encantar com sua literatura e também ter um olhar crítico sobre o seu texto, sua produção, seus limites e seu contexto.
Fonte
QUEIROZ, Eça. O Egito - notas de viagem. 4 edição. Lisboa: Livraria Lello & irmão, 1945.
Bibliografia
GHIGNATTI, Rosana Carvalho da Silva. Visões do Oriente em Eça de Queirós: uma análise comparatista entre os “Relatos de Viagem” e “A Relíquia”. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de Feira de Santana. Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural. Feira de Santana, Bahia, 2008.
SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.
VAKIL, Abdoolkarim. Eça de Queirós e o Islão. Questões do Oriente. Questões do Ocidente. in. Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Abr./set. 2000, n. 9-10, p.74-94.
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