artigo por Ana Terra de Leon e Naiara M. R. G. de Assunção
A instituição do Dia Internacional da Mulher, segundo a pesquisadora Ana Isabel Álvarez González, não pode ser atribuída a um único episódio, como normalmente se coloca em relação ao incêndio numa fábrica de camisas em Nova York em 25 de março de 1911, que causou a morte de 146 pessoas, entre elas, 129 mulheres. Apesar deste episódio ser um marco importante, o Oito de Março deve ser entendido a partir de um quadro histórico mais amplo, sendo o resultado da trajetória de lutas de mulheres por direito ao voto, direitos trabalhistas, fim do capitalismo, dentre outras reivindicações. Para González, só podemos compreender o 8 de março dentro dos marcos da teoria socialista, e neste sentido, é um erro acreditar que apenas as sufragistas burguesas levaram os movimentos de mulheres à frente.
Devemos lembrar também que a luta de mulheres se faz presente em todo o globo. É comum associarmos, por exemplo, o mundo islâmico APENAS à opressão feminina e tirania masculina, ignorando os diversos movimentos feministas e de mulheres no mundo oriental. Porém, ao estudarmos mais apuradamente a história e os movimentos intelectuais no mundo árabe-muçulmano percebemos, o quão limitada é essa visão. Mulheres estão engajadas em questionamentos públicos ao status quo desde o final do século XIX, sendo o Egito um país pioneiro nesse sentido. Segundo a historiadora estadunidense, Margot Badran, debates na esfera pública egípcia - que podem ser entendidos como feministas - já apareciam em publicações ocasionais em forma de poesias, ensaios ou contos nas décadas de 1860 e 1870, tomando maior expressão a partir de 1890 com o “auge do jornalismo feminino e dos debates de salão”.
A pesquisadora brasileira Cila Lima destaca cinco fases do movimento de mulheres no Egito:
"(1) O feminismo liberal radical, de 1920 a 1940, representado por feministas muçulmanas educadas na França ou em escolas francesas; (2) O feminismo populista, de 1940 a 1950, representado, em especial, por feministas de formação marxista; (3) O feminismo sexual, de 1950 a 1970, representado principalmente pela médica egípcia Nawal el Saadawi; (4) O feminismo ressurgente dos anos 1980; e (5) O feminismo islâmico, pós-anos 1990 – resultante do encontro entre o feminismo secular e os movimentos de mulheres pela reislamização (...)" (Cila LIMA, 2014, p. 675-6).
Segundo a autora egípcia Nawal al-Sa'dawi, a opressão às mulheres não é uma característica inerente às culturas árabes ou do Oriente Médio. É algo constituinte do sistema político, econômico e cultural - e a emancipação feminina só pode ocorrer se lutarmos contra a dominação patriarcal de classe. Sadawi, assim, alinha algumas de suas ideias com a de feministas socialistas ocidentais ao mesmo tempo que atenta para as dinâmicas específicas dos países do mundo árabe. Ela argumenta que é um erro orientalista assumir que a opressão nos países árabes se dá simplesmente pela presença do Islã: para ela, a questão reside muito mais na colonização e na tentativa de “modernização” eurocêntrica que isso acarreta e que resulta em mais exploração das mulheres.
Não queremos, aqui, simplesmente evidenciar diferenças entre feminismos “islâmicos” e feminismos “ocidentais”, nos isolando em lutas individualizadas, até porque a questão é muito mais complexa que isso. Afinal, existe um perigo em demonstrar apenas o que nos específica e nos separa, porque isso nos impede de perceber um horizonte comum pelo qual lutar. Porém, é importante ter em mente que existem diversas maneiras de pensar os feminismos dos diversos países Árabes e reconhecer essa diversidade é importantíssimo para respeitar a luta dessas mulheres. Em uma perspectiva que visa destruir a colonialidade, é necessário que compreendamos que todo sujeito é fruto de seu tempo e sociedade e que, portanto, cada movimento trará particularidades a depender de seu contexto - e um olhar feminista no chamado “sul global” necessariamente deve passar pelas questões de classe e da colonialidade.
Como coloca a autora sírio-espanhola Sirin Adbli Sibai, é necessário “solucionar o desencontro colonial”, através do reconhecimento das diferenças e particularidades que os movimentos de mulheres ao redor do mundo enfrentam, e o papel de cumplicidade com o colonialismo quando se lança, desde nosso lado do globo questionamentos autoritários e impositivos em relação às formas e objetivos de militância das mulheres orientais. Torna-se, necessário, assim, reconhecer o histórico de lutas e as tradições intelectuais (normalmente ignoradas) destes grupos sociais para se debater, de forma crítica, visões eurocêntricas e arrogantes, que as invisibilizam e infantilizam.
Nesse 8 de março, gostaríamos de lembrar que essa data é sobre a luta de mulheres, não sobre nossa suposta “natureza feminina” apenas associada com “delicadeza”, “beleza” e uma força romantizada na figura da “guerreira” (que nada mais é que uma mulher explorada por outros homens e pelo sistema). Sequestrada pelo capitalismo, a data virou um festival de distribuição de rosas, mas este dia não é sobre isso: as socialistas que deram origem a essa data não queriam simplesmente adquirir direitos civis na sociedade capitalista, mas uma mudança profunda e revolucionária da sociedade.
Referências:
AL-SAADAWI, Nawal. The hidden face of Eve: Women in the Arab world. Zed Books, 2015.
BADRAN, Margot. Feminismo en el Islam. Convergencias laicas y religiosas, Ediciones Cátedra, Madrid, 2012, [1ª edição em inglês de 2009, Tradução para o espanhol de Tania Arias].
GONZÁLEZ, Ana Isabel Álvarez. As origens e a comemoração do dia internacional das mulheres. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
LIMA, Cila. Um recente movimento político-religioso: feminismo islâmico. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 22, p.675-686, abr./ago. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v22n2/a19v22n2.pdf>. Acesso em: 03 mar. 2017.
SIBAI, Sirin Adbli. La cárcel del feminismo: Hacia un pensamento islámico decolonial. Madrid: Akal, 2016.
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