Quando fazemos uma busca rápida na internet sobre a história da dança do ventre, o que se constata é a sua associação com práticas “milenares”. Os movimentos ondulatórios de quadris são tratados como reminiscências de rituais de fertilidade de religiões “primitivas”, sobretudo do Egito Antigo ou da Babilônia. Outra narrativa que está presente no imaginário sobre essa dança é que ela é uma dança “sensual” e “exótica” que as mulheres fazem para agradar os maridos e que teve origem nos “haréns dos sultões turcos”.
Mas será que isso é verdade?
Bom, acredite ou não, essas duas ideias fazem parte de um discurso construído pelo Ocidente - algo que o pesquisador palestino Edward Said denominou “orientalismo”, se referindo a uma série de representações por meio das quais a cultura europeia produziu uma certa ideia de “Oriente”. O termo “orientalismo” foi cunhado na obra homônima de Said, publicada em 1978. Nesse livro, ele explica que, como parte do processo colonial do século 19, essas representações sobre o chamado “oriente” reforçavam estereótipos negativos, caracterizando orientais como primitivos, exóticos, misteriosos, sensuais, irracionais, atrasados, selvagens, e assim justificavam a imposição da cultura europeia a regiões vistas como inóspitas e atrasadas.
E o que isso tem a ver com a Dança do Ventre? Tais estereótipos estão diretamente ligados à imagem que o homem ocidental criou sobre a mulher oriental durante o período colonial e, consequentemente, com a forma como essa dança se constituiu e foi imaginada no ocidente. Foi neste período que europeus entraram em contato com dançarinas de rua egípcias chamadas Ghawázee, e os dançarinos de rua chamados Khawalat cujo estilo de dança, comum em regiões do Oriente Médio e no Norte da África, utilizava movimentos de torso e de quadril.
Isso causou estranheza e era visto como algo escandaloso já que até danças como a valsa eram vistas como inerentemente sexuais. Assim, não demorou para que os movimentos de quadril executados pelas Ghawázee fossem associados a tentativas de sedução e os Khawalat fossem desprezados por seu comportamento “afeminado”.
Despertando, ao mesmo tempo, repulsa e desejo no público europeu, dançarinas do Oriente Médio e Norte da África foram levadas à Europa e Estados Unidos para serem exibidas em Exposições Universais como curiosidades exóticas, relacionadas ao “primitivo” mundo das colônias. Assim, essas danças orientais foram popularizadas no imaginário ocidental e a estética orientalista influenciou, tanto o desenvolvimento da dança moderna ocidental quanto a transformação da dança profissional no Oriente Médio, popularizada inclusive através do cinema egípcio.
A partir desta circularidade de influências, da popularização da dança oriental relacionada ao imaginário orientalista e de movimentos diaspóricos, a dança do ventre se institucionalizou e transnacionalizou, sendo hoje praticada no mundo inteiro. Ao começar a ser praticada em outras regiões que não o Oriente Médio e o Norte da África, a dança tomou formas e significados diferentes para as diferentes comunidades de praticantes ao redor do mundo. E o discurso da dança do ventre como uma prática “milenar” surge aí.
Os antropólogos Anthony Shay e Barbara Sellers-Young argumentam que a Dança do Ventre “espiritualizada” é um sistema simbólico elaborado a partir de idealizações sobre as culturas do Oriente Médio, utilizado para explicar e justificar esta prática no OCIDENTE. A dança é assim associada não ao Oriente Médio do fundamentalismo islâmico, do terrorismo, e da repressão à mulher – imagens onipresentes no universo midiático atual – mas a um Oriente antigo e místico. Dentro desse imaginário, o corpo feminino é tido como um meio de espiritualidade, em oposição ao materialismo da industrialização ocidental.
Desta forma, atribuir as origens da dança do ventre a tempos longínquos configura-se em uma ESTRATÉGIA para desassociá-la tanto da imagem de um Oriente Médio fundamentalista, quanto da excessiva erotização atribuída a essa dança pelo senso comum machista. Podemos classificar essa narrativa como uma “tradição inventada” no sentido dado pelo historiador inglês Eric Hobsbawm, devido ao seu propósito principal de “socialização, inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento”, afinal, “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” (HOBSBAWM, 2008, p 17).
Mas então isso quer dizer que a dança do ventre não tem ABSOLUTAMENTE nada a ver com as danças do Egito Antigo? Bom, isso é muito difícil de determinar. O artigo “Dance in Ancient Egypt” (“Dança no Egito Antigo) da arqueóloga e egiptóloga Patricia Spencer, nos dá uma boa ideia sobre o assunto. Segundo essa pesquisadora, as poucas evidências que sobreviveram às intempéries do tempo (e bota tempo nisso, pois estamos falando de uma civilização que existiu de seis a três mil anos atrás) são murais de tumbas e templos produzidos pelas/para as elites governantes. Que informações historiadoras e historiadores retiraram desses murais? Mais em relação ao propósito da dança do que em relação a forma: em sua maioria, é possível identificar danças funerárias e danças de templos, em ambos os casos com dançarinos e dançarinas profissionais, vindos de diferentes regiões como a Núbia, no sul do Egito (população negra), asiáticos e gregos. Cabe ressaltar aqui que, até o momento, não há registros de nenhuma menção específica a rituais de fertilidade e danças sagradas femininas utilizando o ventre.
Nesses murais, a forma da dança e os movimentos utilizados são muito difíceis de serem presumidos pois estamos falando de desenhos em duas dimensões com significados que ainda estão em discussão entre egiptólogos e egiptólogas. Uma característica muito específica da arte egípcia é que ela é extremamente conservadora (com pouco espaço para inovação e, portanto, pouca liberdade para representar movimento), simbólica e não realista. Isso quer dizer que aqueles desenhos tinham funções específicas que faziam sentido dentro de convenções culturais específicas, muito difíceis de presumir nos dias de hoje.
Assim sendo, você acha que a moça da gravura acima está dançando dança do ventre? Ou quem sabe ela foi a precursora da yoga? Meio difícil imaginar uma dança a partir de fragmentos de imagens de uma cultura tão distante no tempo e espaço, não? Tendo tudo isso em mente, concluímos que, a partir de evidências arqueológicas disponíveis sobre estas civilizações, não é possível remontar como eram executadas as danças praticadas na antiguidade.
Soma-se a isso as inúmeras rupturas históricas que essa região sofreu ao longo de milênios. O Egito sofreu com a invasão Persa (em 520 Antes da Era Comum); com a conquista macedônica por Alexandre, O Grande (330AEC), tendo vivido o Período Ptolomaico, com o predomínio da cultura grega. Houve a conquista romana a partir da derrota de Cleópatra em 30AEC o que leva à cristianização do Egito e, logo em seguida, o domínio do Império Bizantino. Em 646 DC o Egito é finalmente conquistado pelos árabes e, depois disso, ainda há o domínio Mameluco (a partir de 1250), a Conquista Otomana (a partir de 1517), a invasão francesa (1798) e o domínio inglês (a partir de 1805) desse território. Sabendo disso tudo, vocês não concordam que é forçar um pouco DEMAIS a barra dizer que uma dança ritual permaneceu inalterada durante esse tempo todo, tendo sobrevivido inúmeras transformações culturais e conquistas violentas para chegar pura e autêntica milênios depois aqui no Brasil?
Claro, se quiséssemos fazer uma análise de longuíssima duração, poderíamos estabelecer relações entre qualquer dança atual e danças antigas. Mas por que só tentamos fazer isso com as chamadas “danças étnicas”? Por que ninguém alega que o “ballet” surgiu nas piruetas dos templos sagrados de Stonehange?
Bom, aí que está o orientalismo de nossa visão ocidental que tende a achar que qualquer prática “oriental” é primitiva, estagnada no tempo, inerentemente mítica e ligada a algum tipo de espiritualidade genérica. Como colocado pelo antropólogo cipriota Stavros Stavrou Karayanni: “muitas defensoras desta dança caem, talvez inconscientemente, nas armadilhas de uma disposição ideológica ocidental que deseja que as danças ‘étnicas’ operem como o legado inalterado de uma tradição antiga que é sempre vagamente definida.” (Karayanni, 2009 p.454). No fim a gente percebe que, pra fazer uma salada de frutas e misturar a dança do ventre sagrada da deusa Isis egípcia, com o sistema de chakras do hinduísmo e meditações características do budismo é rapidinho, afinal “é tudo oriental”, não é mesmo? E isso incorre em uma tremenda generalização que desconsidera as especificidades culturais, históricas e sociais de cada etnia, povo, região e religião. Assim, Karayanny, alerta para o perigo da “simplificação excessiva em supor que podemos explicar um fenômeno cultural prescrevendo narrativas congeladas em torno de suas origens” (p. 455).
Segundo ele, essa necessidade de localizar a origem da dança do ventre em um passado mágico e antigo vem como resposta ao olhar masculino depreciativo sobre a dança:
Confrontado com o corpo feminino sob a influência da dança do ventre, o olhar masculino se confunde com um movimento que não consegue mapear e com uma energia que não consegue compreender. Eu acredito que é em grande parte a desaprovação dos homens inspirada pelo medo do feminino que privou esta dança da apreciação e até mesmo do reconhecimento artístico e do status que ela justamente merece. Além disso, foram essas atitudes que geraram o sistema de crenças da ‘Deusa Mãe' e dos rituais de fertilidade na cultura da dança do ventre. É interessante, porém, observar, que na Turquia, Egito e outros lugares onde as primeiras manifestações artísticas desta dança existiam antes de começarem a ser exportadas para a Europa por meio de relatos de viagens e das Feiras Universais, a dança é cercada por uma cultura tão diferente da a do Ocidente que a associação da dança com o passado mítico relacionado ao matriarcado da Deusa Mãe causa surpresa e perplexidade. (Karayanni, 2009 p.458)
De maneira semelhante, a antropóloga e bailarina estadunidense Andrea Deagon argumenta que “um dos propósitos de toda mitologia é explicar o presente por meio da referência aos eventos heroicos do passado” e que assim acontece na comunidade de praticantes de dança do ventre. A autora alega que, através dessas histórias fabricadas e perpetuadas através da oralidade ou da internet, esse mito de origem fundado em um Egito Antigo que já foi embranquecido e apropriado por Hollywood idealiza e romantiza um passado distante da dança (se você quer saber mais sobre isso, leia o texto “O outro, o Egito Antigo e a Branquitude” aqui no blog). Assim, essa manifestação cultural é tida como “cultura universal”, justificando a prática de dança do ventre por bailarinas brancas estadunidenses.
Podemos trazer a argumentação de Andrea Deagon para o contexto brasileiro. O antropólogo libanês John Tofik Karam, ao estudar o mercado de dança do ventre brasileiro (mais especificamente em São Paulo) constatou que a dança do ventre, quando chegou no Brasil, foi desenvolvida por mulheres brancas de ascendência europeia, em associação com homens da comunidade árabe. Ele argumenta que, nesse contexto, o discurso da dança do ventre sagrada para deusas egípcias embranquecidas serviu à comunidade de praticantes brasileiras (mais especificamente, da classe média paulistana) para legitimar sua prática de uma dança alegadamente “feminina” e “universal” e que, ao fim mulheres árabes no Brasil acabaram excluídas desse processo.
Por mais complicadas que sejam essas afirmações, podemos pensar: Colocar a história da dança do ventre num passado distante e embranquecido será que não apaga a diversidade cultural, étnica, religiosa, social e econômica do Norte da África e Oriente Médio? Será que não acaba destacando grupos privilegiados em detrimento de minorias sociais, como as ghawazee? Nosso ideal estético de bailarina como branca, alta, de cabelos lisos e compridos condiz com o tipo físico da maioria das mulheres brasileiras e da maioria das mulheres norte africanas e meso orientais?
Juntamos a isso os questionamentos da antropóloga estadunidense Donnalee Dox:
As vivências individuais possibilitadas por meio de experiências somáticas e imagens de matriarcados, deusas, sacerdotisas, partos e rituais femininos também inclui corpos masculinos, lésbicas, transexuais, idosos, presos ou enfermos? Como o sentido de transcender a cultura material e a identidade material (mesmo que a dança seja definida em relação às suas raízes no Oriente Médio e sua resistência à cultura ocidental) leva à mudança social ou política? Até que ponto o foco na autoconsciência como forma de espiritualidade não é um reflexo de outros movimentos espirituais ocidentais, como a filosofia “New Age”? Existe uma base ética ou intelectual para a dança do ventre espiritual que se enquadre nos objetivos dos movimentos sociais ou políticos? O esforço para reconciliar o corpo feminino por meio de uma dança descrita pelos praticantes como "universal" pode incluir mulheres cujas experiências de cultura e sistemas de valores diferem radicalmente umas das outras? Se sim, como? (Dox, 2005, p. 334).
Levando tudo isso em consideração, para que e a quem serve perpetuar o discurso de uma dança do ventre originária no mundo antigo ao invés de discutir problemáticas mais recentes, como a relação direta entre dança do ventre e colonialismo ou o papel crucial de dançarinos e dançarinas marginalizadas como as ghawázee e os khawalat egípcios na constituição dessa dança? Vamos pensar sobre isso?
Blibliografia
ASSUNÇÃO, Naiara M. R. G. de. As origens da Dança do Ventre: Perspectivas críticas e orientalismo. TCC, Departamento de História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/223999
ASSUNÇÃO, Naiara M. R. G. de. Entre Ghawázee e Awálim e Khalwals: Viajantes Inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre”. Dissertação de Mestrado, PPGH UFRGS, Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/182762
DOX, Donnalee. Spirit from the Body: Belly Dance as a Spiritual Practice. In: SELLERS-YOUNG, Barbara; SHAY, Anthony. Belly Dance: Orientalism, Transnacionalism and Harem Fantasy. Mazda Publishers, 2005.
HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
KARAM, John Tofik. Belly Dancing and the (En)Gendering of Ethnic Sexuality in the “Mixed” Brazilian Nation. Journal of Middle East Women's Studies, Vol. 6, No. 2 (Spring 2010), pp. 86-114. Duke University Press. 2010. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.2979/mew.2010.6.2.86
KARAYANNI, Stavros Stavrou. Sacred Embodiment: fertility ritual, mother goddess, and cultures of belly dance. Religion And The Arts, v. 13, n. 4, p. 448-463, 2009. Brill. http://dx.doi.org/10.1163/107992609x12524941449921.
SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.
SALGUEIRO, Roberta da Rocha. "Um Longo Arabesco": Corpo, subjetividade e transnacionalismo a partir da dança do ventre. Tese (Doutorado). Antropologia Social, Unb, Brasília, 2012. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/11249
SELLERS-YOUNG, Barbara; SHAY, Anthony. Belly Dance: Orientalism, Transnacionalism and Harem Fantasy. Mazda Publishers, 2005.
SPENCER, Patricia. Dance in Ancient Egypt. Near Eastern Archaeology: Dance in the Ancient World, Chicago, v. 66, n. 3, p. 111-121, set. 2003. The University of Chicago Press on behalf of The American Schools of Oriental Research. Disponível em: https://www.academia.edu/1271870/Dance_in_Ancient_Egypt